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InternetEscola de Magistrados Notícias 2018Agosto30/08/2018

30/08/2018

ÉTICA DEVERIA GUIAR POLÍTICAS DE SAÚDE GLOBAL

Para promover uma aproximação maior da interface Saúde e Direito, a EMAG organizou no dia 27/8, em conjunto com a Faculdade de Saúde Pública da USP, o evento Ética e Saúde Global, que contou com a presença de duas especialistas na área: Deisy Ventura, professora de direito internacional e livre docente do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo, e Thana Campos, doutora em Direito Internacional pela Universidade de Oxford.

O evento teve a coordenação da  desembargadora federal Inês Virgínia Prado Soares e da juíza federal Raquel Fernandes Perrini. A abertura contou com a presença dos juízes federais Gabriela de Azevedo Campos Sales e Ricardo de Castro Nascimento. A doutora Gabriela iniciou sua exposição lembrando a todos que crises sanitárias sempre caminham junto com violações a direitos humanos.

A palestrante Deisy Ventura, autora do livro Ética e Saúde Global, salientou que há sempre uma permeabilidade entre o Direito Internacional e o Direito interno dos países na área de saúde. Hoje, diferentes mundos convivem dentro de uma mesma realidade marcada por desigualdades abissais e por uma degradação progressiva do meio ambiente. Essa sociedade é denominada de “era da indecência” pelo filósofo francês Frédéric Gros, autor do livro Desobedecer. Segundo a pesquisadora, Gros, em seu livro, nos ensina a não aceitar o inaceitável. “Por esta razão, defendo uma visão crítica da saúde global”.

Ventura assinala que hoje duas perspectivas se enfrentam em matéria de saúde global: uma com ênfase no uso da tecnologia moderna para combater doenças e outra que vê a importância da saúde para o crescimento econômico, buscando manter uma força de trabalho produtiva nas populações. Por outro lado, falta equanimidade nas políticas públicas atinentes à saúde, esta precisa ser vista como um problema ético e de justiça, demandando uma agenda para tanto.

A palestrante lembrou que a primeira conferência internacional sanitária, ocorrida em 1851, já trazia em sua ata uma tensão entre, de um lado, os interesses da saúde e de seus profissionais e, de outro, os interesses econômicos. Tal contradição permeia todas as relações internas aos países e também as relações de saúde em âmbito internacional. “Há duas ou três décadas, começamos a usar a expressão ‘saúde global’ para nos referirmos a coisas muito diferentes. O consenso que existe hoje em torno da expressão se refere ao crescimento da cooperação internacional em saúde”, declarou.

Ventura citou um levantamento amplo, feito em cerca de duzentos países, denominado Global Burden of Deseases Study, de fevereiro de 2018, que mostra um crescimento do investimento em cooperação internacional em saúde nos últimos anos, que passou de menos de 10 milhões de dólares nos anos 90, para mais de 40 milhões de dólares em 2013, com uma ligeira queda de 2013 até agora. “Tivemos um crescimento extraordinário do financiamento de programas de cooperação internacional em saúde, que gerou a proliferação de centros de pesquisa, de grupos de reflexão sobre saúde global no mundo inteiro”, observa a palestrante.

Por que o crescimento tão vertiginoso desse financiamento? Ventura informa que entre os atores desse crescimento há uma presença muito forte dos Estados Unidos, não só do Estado norte-americano, mas de fundações americanas e ONGs americanas. Outra constatação desse estudo é a rivalidade, desde os anos 80, entre a Organização Mundial da Saúde (OMS) - que é, segundo a sua própria Constituição (1946), a encarregada de coordenar a ação internacional em matéria de saúde – com o Banco Mundial, que tem uma visão muito particular sobre o que é o desenvolvimento e a saúde. Dentro da OMS foi crescendo ao longo dos anos o financiamento da saúde pelos Estados Unidos e pela Fundação Gates. A OMS era 75% financiada por contribuições obrigatórias dos Estados e decidia o que fazer com o dinheiro. Já hoje ela é financiada 75% por contribuições voluntárias. Isso reduziu a margem de autonomia da OMS para decidir onde vai atuar. A entidade tem, em seu orçamento atual, 16,99% pagos pelo governo dos EUA, 16,95% pela Fundação Gates e 9,43% pagos pelo Reino Unido. Há um grande predomínio de determinados atores nessa entidade concorrente do Banco mundial.

A partir da eleição de Donald Trump, houve uma redução do orçamento para cooperação internacional no seu conjunto. O presidente dos EUA anunciou, desde a sua chegada, cortes especificamente nos programas de saúde global. Essa atitude motivou os defensores dos programas de saúde global que vieram a público para defendê-los. Por exemplo, Bill Gates pautou, em maio de 2017, a capa da revista Times, com um discurso recorrente da Fundação Gates, dizendo que ‘não estamos preparados para a próxima pandemia’. Na revista, um artigo do próprio Gates defende que os programas de saúde global são importantes para os Estados Unidos, não apenas porque trazem segurança - protegendo contra doenças que vêm de fora - mas porque as empresas norte-americanas prestam serviços nesses programas e os beneficiários da saúde global se tornaram, ao longo de décadas, os maiores parceiros comerciais dos Estados Unidos. Em síntese, os programas de saúde global são importantes para a segurança dos Estados Unidos, mas também para os negócios de empresários americanos.

Richard Horton é editor da revista Lancet, publicação de destaque na área médica, sediada no Reino Unido, que defende os programas de saúde global. Horton afirma que eles são elementos de política externa.

Como essas forças têm se organizado para manter o investimento nesses programas? Ventura declara que elas têm optado por defender os programas de saúde global com o argumento de que se trata de uma forma da segurança: “A única forma de estarmos seguros é o acesso à saúde no mundo inteiro”, dizem tais atores, segundo a palestrante.

Ventura discorreu também sobre o que entende por ética. Ética não é o mero cumprimento de leis ou de decisões judiciais. Citou o filósofo francês Paul Ricoeur, para quem a ética “tem a vasta ambição de reconstruir todos os intermediários que existem entre a liberdade, que é o ponto de partida, e a lei, que é o ponto de chegada”. Dessa forma, a ética precede a lei e não seria um objeto, mas uma ambição, que vai muito além de cumprir os deveres. Para a palestrante, a nossa insatisfação com os poderes públicos talvez seja um reflexo de nosso sonho de justiça, que continua vivo.  

O que seria uma agenda para discutir ética e saúde global hoje? Na opinião de Ventura, quase todos os programas de saúde global hoje se apresentam com a expressão “salvar vidas”. Mas é preciso perguntar: salvar vidas de quem? Quantos interesses estão por trás dessa expressão? Qual seria o fundamento ético dos programas de saúde global? É preciso discutir a existência e eficiência dos programas internacionais, especialmente quando se fala em segurança. Por exemplo, há a eficácia dos programas para acesso aos medicamentos para o combate ao HIV/Aids na África, ao mesmo tempo em que muitas adolescentes morrem no parto, por inexistência de condições mínimas de assistência, ou mesmo água potável. Não se trata de se opor a tais programas, mas de se indagar se os recursos financeiros empregados para compra desses medicamentos não cobririam programas menos onerosos, como a questão da saúde materna/infantil em determinados países. Poderiam ser obtidos resultados muito melhores quanto à efetividade do direito, em termos de justiça e supressão de iniquidades. “É importante ter um olhar crítico sobre os programas de saúde global, sem menosprezar sua importância”, assinala a palestrante.

Um dos pontos ressaltados por Ventura sobre saúde global foi o programa Obama Care, consideradoum avanço em um país de visão liberal – no sentido de que cada um tem que cuidar de sua própria saúde. O que aconteceu nos Estados Unidos, e que Obama percebeu muito bem, é que a crise econômica deteriorou as condições de saúde de um contingente enorme de pessoas e a doença implica a degradação imediata das condições econômicas. “No momento em que fico doente, eu não tenho capacidade de trabalho”, observou Ventura. Ademais, o desemprego também traz consequências nefastas sobre a saúde. Tais situações são evitáveis por medidas públicas, entre elas, a existência de um seguro obrigatório. Infelizmente, com o governo Trump, houve um retrocesso nos dois últimos anos.

Em países como o Brasil e no Reino Unido, que têm grandes sistemas públicos de saúde, é preciso ver com muita cautela esse debate sobre cobertura universal de saúde. Há uma diferença entre falar no direito à saúde e em cobertura universal de saúde. A ideia de cobertura é ligada ao mercado de seguros, dos planos de saúde, esquecendo-se dos grandes sistemas públicos de saúde. “O seguro não dá conta daquilo que o Estado precisa fazer para garantir a saúde das pessoas”, declarou Ventura. Assim, “cobertura universal” seria um conceito em disputa. A palestrante lembra que as necessidades de saúde vão muito além do que um seguro pode propiciar. O seguro pode ser importante, mas não podemos desistir dos sistemas públicos de saúde. “Não dá pra pensar em ética sem dizer o que é essa grande corrida internacional, com o Banco Mundial à frente, para falar de cobertura universal de saúde e não mais do direito à saúde”, afirmou. Para ela, “a internacionalização dos planos de saúde é o que nós estamos testemunhando, sentindo na carne aqui no Brasil.”

Ventura falou também em segurança e sustentabilidade e indagou: “Segurança de quem?” Corremos o risco de desrespeitar o direito de algumas pessoas, salvaguardando o de outras. Os exemplos são abundantes: na crise do ebola, os diversos países que restringiram a entrada de pessoas, inclusive de profissionais que haviam trabalhado no front, em nome da proteção da saúde dos demais. Por outro lado, “tivemos uma resposta muito importante na crise do Zika: sem o SUS, não teríamos sequer feito a associação do vírus com a microencefalia no sertão nordestino. Assim, evitou-se uma catástrofe no Brasil. “Poderia ter sido infinitamente pior se não tivéssemos o SUS”, observou a palestrante. Se as pessoas não tiverem dinheiro para pagar um seguro saúde, nós jamais estaremos, enquanto sociedade, 100% seguros. Precisamos falar de uma segurança sustentável com medidas de médio e longo prazo. Uma política sustentável, nesse caso, começa com saneamento básico.

Por fim, não é possível falar de ética e saúde global sem falar nas políticas de austeridade dos governos. “De que adianta falar de saúde global se os governos no mundo inteiro estão sendo encorajadas a reduzir o orçamento para a saúde?”, ponderou Ventura. Com a redução do investimento nacional em saúde, os programas mais importantes de combate a doenças ficam dependentes de verba internacional.  Tais políticas precisam ser revistas do ponto de vista ético. Há ainda a questão do “filantrocapitalismo”, ou seja, o interesse das fundações filantrópicas em investir em programas de saúde. Deve-se financiar o combate à pobreza, mas de modo a gerar negócios, nos locais em que os recursos financeiros são recebidos, já que “salvar vidas de recém-nascidos é um ‘ato de amor’ extremamente rentável do ponto de vista econômico. Há uma tentativa de associar lucro e salvar vidas”, salienta Ventura.

Falar de gênero em saúde também é importante, Ventura concluiu sua exposição afirmando que, na crise do ebola e do Zika, as mulheres foram as mais atingidas. “Saúde global também tem a ver com o empoderamento das mulheres”.

A segunda palestrante da mesa, a professora Thana Campos, autora do livro The globalHealth Crisis, viveu em sete países diferentes, convivendo com pessoas de diferentes culturas e de diversas convicções políticas e religiosas. Com base em tal vivência, ela salientou que a natureza humana “possui um elo, um terreno comum em matéria de direitos humanos”.

Em sua pesquisa, destacou de que forma o direito de propriedade intelectual impacta negativamente a saúde dos mais pobres, assinalando que as empresas farmacêuticas envolvidas na saúde global têm uma responsabilidade especial no que diz respeito às suas patentes.

Para a palestrante, o direito de propriedade privada de patentes deve ser limitado para controlar a crise global de saúde. Ela parte do seguinte silogismo: a premissa maior é a de que se aplicam limitações razoáveis aos direitos de propriedade privada em caso de catástrofes; a premissa menor é a de que a crise de saúde global qualifica-se como uma catástrofe; a conclusão é a de que as empresas farmacêuticas têm uma responsabilidade especial e sua propriedade privada - as patentes farmacêuticas - deve, justificadamente, ser limitada.

Uma das faces da crise de saúde global é um problema de acesso ao conhecimento médico, a outra é o problema de acesso a medicamentos, em geral muito caros e que não chegam a pacientes que precisam por falta de infraestrutura nos países em desenvolvimento.

O Regime Internacional dos Direitos de Propriedade Intelectual da Organização Mundial do Comércio é que provê os incentivos para pesquisa e desenvolvimento. Os acadêmicos de Direitos Humanos, no entanto, assinalam que não há investimentos nas doenças negligenciadas, tais como zika, ebola, malária, mal de chagas, dengue, tuberculose. Essas enfermidades fazem parte da caracterização da chamada crise da saúde global.

No âmbito teórico, a pesquisa da palestrante mostra que Thomas de Aquino vê na sociedade a existência de pessoas pobres, bem como a existência do direito à propriedade privada. Esse direito prevê dois aspectos que seriam a necessidade do sustento próprio (famílias e empresas), bem como um aspecto supérfluo (sobras ou excedentes), o qual é passível de ser revertido para o benefício comum dos pobres. Por sua vez, John Locke, menos radical, é considerado o pai da propriedade privada e, por consequência, pai da propriedade privada intelectual. Para ele, se há superabundância de recursos, as populações mais pobres podem ser ajudadas, para o bem comum. Por fim, Robert Nozick entende a propriedade privada como direito básico e fundamental e não acredita no dever de ajudar os pobres. Contudo, o direito de propriedade privada pode sofrer limitações exclusivamente em casos de catástrofe. O núcleo comum de todas essas teorias é o de que a propriedade privada é um direito fundamental, mas não absoluto, existindo o dever dos proprietários em ajudar no caso de catástrofe.

A crise de saúde global mata cerca de 2,6 milhões de pessoas por ano, mais que a bomba atômica jogada sobre Hiroshima e Nagasaki. Em um cenário como esse, as limitações ao direito de propriedade privada intelectual são definidas pelos deveres éticos com relação aos pobres afligidos por catástrofes. Assim, as empresas farmacêuticas podem e devem ajudar em casos de catástrofe como é a crise na saúde global.

Durante os debates, foi observado ainda que os países que investem mais em políticas sociais saem mais rápido das crises, o que atesta o desastre das políticas de austeridade. Interessante notar que quem defende austeridade não costuma apresentar dados. Trata-se de um argumento ideológico para diminuir o papel do Estado. Foi lembrado ainda que não causar dano é o primeiro dever do Governo e que para cada dólar que se investe na saúde, a melhora das condições de vida pode ser quantificada em três dólares. Assim, para deixar mais evidente seu aspecto nefasto, cortes no orçamento deveriam ser anunciados em número de mortes.

Foi ponderado ainda que há uma crítica constante ao Poder Judiciário, acusado de atrapalhar o financiamento da saúde coletiva. Porém, há estudos dizendo que a judicialização não produz distorção e o acesso à saúde, o que pode ocorrer também por meio da Justiça, é um direito fundamental.  

 

Publicado em 30/08/2018 às 17h40 e atualizado em 28/04/2025 às 12h46