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InternetEscola de Magistrados Notícias 2018Dezembro18/12/18

18/12/18

EMAG DISCUTE USO MEDICINAL DA CANNABIS

 

 

O curso Drogas: modelos regulatórios realizado no auditório da EMAG apresentou vários painéis com diferentes enfoques sobre a temática. Um deles tratou do uso medicinal das drogas, especialmente da cannabis, vulgarmente conhecida como maconha e de seus resultados positivos. O tema foi discutido pelas especialistas Maria Aparecida Felício de Carvalho, mais conhecida como Cidinha Carvalho, presidente da Cultive Associação de Cannabis e Saúde; Paula Baseggio Dall Stella, médica, diretora da Ama+me-Associação Brasileira de Pacientes de Cannabis Medicinal e Camila Magalhães Silveira, médica, pesquisadora do núcleo de epidemiologia psiquiátrica do IPq (FMUSP), em mesa presidida pelo juiz federal Silvio César Arouck Gemaque.

 

Num relato emocionado, Cidinha Carvalho falou de sua experiência como mãe de uma menina portadora de síndrome de Dravet, forma severa de epilepsia caracterizada por convulsões intensas, com risco de morte súbita. A criança e a família sofreram por vários anos em razão da ineficácia do tratamento com medicamentos anticonvulsivantes comuns da indústria farmacêutica, até o momento em que a mãe tomou conhecimento, em 2013, do caso de Charlotte Figi, uma criança estrangeira, também vítima da doença, tratada com óleo de cannabis, que apresentava sensível melhora dos sintomas. A partir daí, Cidinha pesquisou diversos artigos no Google sobre o tratamento com a substância e envidou todos os esforços para consegui-la e tratar sua filha.

 

Com o auxílio de uma neurologista, Cidinha começou a investigar o tratamento. Criou uma página no Facebook para encontrar e reunir mães com filhos acometidos pela síndrome de Dravet e discutir o alívio dos sintomas da doença pela cannabis enquanto não se descobre a cura. Conseguiu reunir diversas mães de crianças com síndrome de Dravet e de outras epilepsias refratárias. No Brasil, a substância era proibida, mas em 2014, Cidinha conseguiu comprar duas amostras do remédio no valor de U$ 500,00, para sua filha e para outra mãe com filho de síndrome de Dravet residente no Rio de Janeiro. Já na primeira dose, sua filha passou 11 dias sem apresentar uma única convulsão. O óleo de cannabis não apresentava os efeitos colaterais “horríveis” dos anticonvulsivantes. O resultado positivo e o alto custo impulsionaram Cidinha e seu marido a conseguiram sementes de cannabis para o cultivo. Na tentativa de tentar entender o que a filha poderia sentir, passaram e a frequentar eventos sobre maconha, até mesmo aqueles sobre o uso recreativo. Ela relatou que após 8 meses de uso do óleo de cannabis, a filha melhorou dos sintomas de hipotonia e já podia brincar numa cama elástica; após um ano e dois meses já subia e descia escadas sozinha, e passou a montar quebra cabeças de 150 peças, sendo que antes não montava sequer um de 6 peças. Também apresentou sensível melhora no desempenho escolar e na sociabilidade.

 

Durante a realização do IV Simpósio Internacional da Cannabis, na UNIFESP, com a presença de médicos do Uruguai, Califórnia, Reino Unido e outros países discutindo as propriedades do óleo, Cidinha descobriu uma rede secreta no Rio de Janeiro que desafiava a lei para produzir o extrato de maconha, e que passou a lhe fornecer o óleo, já que o cultivo próprio apresentava problemas e que o custo de importação era proibitivo.

 

Cidinha conta que passou a participar da Marcha da Maconha nos anos de 2015, 2016, 2017, pois “trata-se de uma luta de vários coletivos que não é somente pela cannabis, mas é pela dignidade da vida”, declarou. Em 2015, ela e seu marido tiveram a oportunidade de ir ao Chile conhecer a plantação da Fundação Daya e participar de uma oficina de extração do óleo de cannabis com a Mamá Cultiva. Em 2016, a família obteve um habeas corpus para cultivar e extrair o óleo de cannabis junto ao Poder Judiciário, na decisão havia a recomendação de manter em seu domicílio as plantas na quantidade suficiente para o contínuo tratamento. O cultivo para terceiros caracteriza tráfico. Ela mencionou que o juiz que concedeu a liminar “não acreditava que uma mãe pudesse se esconder atrás de um filho para poder traficar”, o que a fez “acreditar mais na Justiça”. Ela se indaga a respeito de se outras patologias como esclerose múltipla, depressão, síndrome do pânico, ou outros perfis de pessoas como um negro, pobre, da periferia conseguiriam sensibilizar as autoridades, como ocorreu no seu caso. “Logo já vem a desconfiança”, observou.

 

Hoje, no Brasil, existem quatro formas de acesso ao óleo de cannabis: por meio  da importação; por meio de associação; pelo autocultivo; por meio do mercado ilegal. Ressaltou que a associação para o cultivo é importante porque além de poupar tempo e recursos materiais, garante maior controle sobre a qualidade e a procedência da matéria prima para a extração do óleo.

 

A Cultive – Associação de Cannabis e Saúde ministra oficinas de extração de óleo a grupos reduzidos e atua junto às autoridades na busca da legalização do cultivo para uso terapêutico. A palestrante terminou sua exposição lembrando o disposto no artigo 227, segundo o qual é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, a profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

 

A médica Paula Baseggio Dall Stella, diretora da AMA+ME (Associação Brasileira de Pacientes de Cannabis Medicinal) apresentou um panorama global e os desafios para o futuro do uso da cannabis medicinal. Ela traçou uma linha do tempo desde a antiguidade até os dias atuais, para apontar seu emprego recreativo e terapêutico em diversas culturas.

 

No Brasil o uso medicinal da substância pode ser regulamentado por meio de uma ação direta de inconstitucionalidade no STF. A AMA+ME tem interesse jurídico na articulação política para provocar esta ação, que tem como finalidade declarar que a lei de drogas ou parte dela é inconstitucional. O objetivo é fazer o pedido de interpretação conforme a CF/88 do artigo 33, I, II e III da Lei nº 11.343 para afastar o entendimento que criminaliza o plantio e cultivo da maconha para fins medicinais, quando o paciente estiver autorizado a fazer uso da substância pela agência reguladora, em respeito ao direito individual.

 

Segundo a médica é possível o tratamento com a cannabis para males físicos como câncer, doenças auto-imunes, neuropatia, náusea, AVC, diabetes, HIV, fibromialgia, dor crônica, síndrome do cólon irritável e desordens metabólicas. Do mesmo modo alguns males mentais como TDAH, depressão, ansiedade, TOC, TEPT, autismo, epilepsia, Alzheimer e doenças neurodegenerativas também são tratáveis pela substância. Dall Stella mencionou ainda um estudo apresentado pela publicação Health Affairs, para descobrir se a cannabis medicinal muda a prática clínica dos médicos e se isso poderia conter os custos de saúde pública. O resultado desse estudo foi o de que o Medicare, sistema de seguros de saúde gerido pelo governo dos Estados Unidos, economizou cerca de US$ 165 milhões em 2013. A estimativa foi de que se a cannabis medicinal estivesse disponível em todo o território americano, as despesas teriam diminuído no mesmo ano cerca de U$ 470 milhões. Os pesquisadores descobriram que em estados com leis que permitem o uso da cannabis medicinal o número de prescrições diminuiu para remédios destinados a tratar dor, depressão, ansiedade, náuseas, psicose, convulsões, distúrbios do sono e de espasticidade.

 

Camila Magalhães Silveira, psiquiatra, procurou apresentar aos participantes as distinções entre o uso medicinal e o uso recreativo da cannabis e outras drogas. Explicou que cannabis é um termo genérico para inúmeras preparações psicoativas das plantas de cannabis (cannabis sativa, indica e ruderalis). Ela ressaltou que é preciso entender que o THC (delta-9-tetrahydrocannabinol) é um componente psicoativo e o CBD (canabidiol) e CBN (canabinol) são componentes não psicoativos, ou seja, não têm os efeitos agudos popularmente conhecidos da maconha. Trata-se de uma complexidade em relação aos componentes da droga. A maconha comumente conhecida tem quantidades distintas de THC e CBD, seja prensada, skunk ou haxixe. A maconha prensada tem cerca de 4 a 12% de THC e proporções muito baixas de CBD. A maconha cultivada para tratar algumas doenças tem 50% é de CDB, concentrado puro. Para efeito clínico é importante saber a quantidade de CDB que vai ser útil para tratar determinada morbidade.

 

Uma das grandes questões quanto à regulamentação é que houve um crescimento significativo, verificado nas apreensões, na proporção do THC na maconha que circula para consumo popular, recreativamente. É um dado preocupante porque quanto menor a proporção, menos prejuízos e, inversamente, quanto maior a proporção de THC, maiores são os prejuízos. A palestrante assinala que mesmo com o crescimento das taxas de THC, a dependência é pequena. Na população de São Paulo, a dependência é de 0,5% da população. Na população mundial, o índice de consumo é de 4%. No último ano, o consumo entre a população adulta de São Paulo foi de 2,5%, menor do que nos Estados Unidos, Espanha e França.

 

O perfil dos usuários é bastante semelhante ao de outros países: em geral são homens, solteiros, fora do mercado de trabalho, com melhor nível sócio econômico e residentes nos grandes centros urbanos, o que se contrapõe ao perfil da população encarcerada em virtude da maconha. “É deletério o impacto que isso tem nas populações mais pobres”, declarou a palestrante. Os ganhos da aplicação medicinal da substância já estão consagrados, mas a questão está na discussão sobre o uso recreativo e o uso medicinal conjuntamente. “Deve haver certa cautela, pois devido ao uso medicinal, em diversos países, os jovens têm a impressão de que a maconha seria absolutamente inofensiva”, afirmou a palestrante. Ela citou alguns números do estudo SP Megacity: em relação aos universitários, 1 em cada 4 usou a droga no último ano; homens usam 3 vezes mais do que mulheres; classe A utiliza 4 vezes mais do que classes mais baixas; o uso é 5 vezes maior numa faixa de 18 a 24 anos; brancos utilizam 2 vezes mais do que negros. Entre os adolescentes o uso no último ano foi de 3,4%. Entre estudantes do 9º ano, 4,1% utilizam maconha. Há um estudo dos efeitos sociais do uso não médico da cannabis pela OMS. O que está bem consolidado a esse respeito são as taxas de dependência: em torno de 4% da população.

 

Em termos de consequências negativas foram destacados os acidentes fatais e não fatais de veículos automotores sob influência da maconha, prejuízos respiratórios (bronquite crônica e câncer de pulmão), especialmente pelo uso associado ao tabaco, antecipação de esquizofrenia em indivíduos predispostos e agravamento da doença. “É importante ter muito cuidado com a idade de início do uso da substância ao formular uma política. É interessante postergar a liberação ao máximo, para depois dos 18 anos, quando o sistema nervoso central já está formado, o que pode se estender até os 21 anos, quando se encontra completamente formado”. O uso antes 15 anos é considerado precoce e os prejuízos cognitivos (atencional, memória, funcionamento executivo e tomada de decisões) podem aparecer e são maiores em quem faz uso diário ou em grandes quantidades.

 

A palestrante assinala que, em sua opinião, “o uso medicinal deveria ser tratado de um modo diferente para que houvesse respeito pelos perfis e buscas distintas dos usuários.” Tem havido um crescimento nos estudos sobre uso medicinal e terapêutico, mas ainda é um número pequeno. Com o tempo deverá haver um incremento nesse número, incluindo todas essas mudanças no olhar para a cannabis medicinal, de uma maneira cada vez mais consistente. No Brasil ainda não há um banco de dados numericamente consistente sobre o assunto, mas em junho de 2018, informou a especialista, a OMS recomendou retirar o CBD (canabidiol) da lista de drogas, pelo fato de ele não ter efeito psicoativo. E daqui pra frente haverá eventos anuais com a finalidade de promover esses estudos e pesquisas. Mas os efeitos sobre, por exemplo, a síndrome de Dravet já podem ser percebidos pela literatura médica. Em outras doenças, as evidências ainda precisam ganhar corpo.

 

Desde 2015, para obter as medicações à base de substâncias derivadas da planta cannabis sativa, é preciso uma prescrição médica. O paciente tem que se cadastrar na Anvisa e aguardar a análise do pedido. Com a autorização da importação pela Anvisa, o produto será adquirido e importado. Em seguida, passa pela fiscalização e liberação da importação pela Anvisa.

 

O uso medicinal da cannabis está liberado no Canadá, nos EUA (2001), na Suíça, no Reino Unido, em Portugal, no Zimbábue. Tanto o uso medicinal como o recreativo está liberado no Canadá, no Uruguai, nos EUA (11 estados) e nos Países Baixos (com venda somente nos coffeeshops). E permanece ilegal no Brasil, Índia, Russia, China, Bolívia e Qatar.

 

 

 

 

 

 

 

 

Publicado em 18/12/2018 às 15h59 e atualizado em 28/04/2025 às 12h46