Visita a presídios aproxima Judiciário da realidade das encarceradas

Prisioneiras da Penitenciária Feminina do Carandiru e do Centro de Progressão Penitenciária do Butantã receberam a visita de um grupo de magistrados e servidores federais, nos dias 29 e 30 de outubro. A atividade é parte integrante do curso “Encarceramento feminino visto de perto: gênero, maternidade e prisões de estrangeiras”, coordenado pelas juízas federais Renata Andrade Lotufo e Natália Luchini. Além de conhecer as dependências, serviços e atividades das instituições, as visitas permitiram uma aproximação do Judiciário com a realidade de quem vive na prisão.
A Penitenciária Feminina da Capital, localizada no Carandiru é considerada modelo. Com capacidade para 606 mulheres, abriga 532 em regime fechado. Segundo Deyse Andrade, supervisora técnica do presídio, 80% dessa população está lá por tráfico de drogas. A instituição tem três pavilhões. O grupo de visitou o pavilhão 3 destinado às estrangeiras em prisão provisória encaminhadas pela Polícia Federal e DENARC ou sentenciadas pela Justiça Federal. No caso dessas mulheres, a diferença cultural e a dificuldade da língua são alguns dos problemas. Por vezes, não há ninguém que fale o idioma e a comunicação se faz por gestos. Existem consulados que prestam assistência às estrangeiras, porém não é uma constante. Muitos consulados não mantém contato com suas nacionais.
A falta de comunicabilidade das presas estrangeiras com a família e mesmo com os agentes penitenciários foi um ponto que chamou a atenção de Gabriel Rei de França João, servidor do TRF3 que participou da visita. Para ele, deveria haver um tradutor na instituição. “Se para brasileiros já é difícil entender os trâmites processuais, imagina para quem vem de fora. A pessoa deve se sentir completamente ilhada e desesperançada por não saber o que vai acontecer”.
Apesar de concentrar um grande número de mulheres, a PFC não dispõe de nenhum consultório médico permanente no presídio. Nos casos em que há necessidade de atendimento, as presas são escoltadas até uma Unidade Básica de Saúde (UBS) próxima, ou hospitais, quando necessário. Do mesmo modo as grávidas dão a luz numa maternidade externa, mas a família não acompanha a presa e fica sabendo do nascimento da criança depois que a mãe volta para a prisão. O grupo visitou também uma ala destinada às presas lactantes e seus bebês até completarem seis meses. Para os visitantes ficou evidente na conversa com as mães a angústia quanto ao momento de serem apartadas de seus filhos.
A PFC tem espaços adequados para educação: salas de aula para ensino fundamental e médio, biblioteca com cerca de 10 mil títulos, aulas de português para estrangeiros e um espaço ecumênico utilizado também para apresentações artísticas de canto, dança e teatro. Tais atividades são coordenadas por voluntários de ONGs que atuam no local, o que não garante muito sua regularidade.
O trabalho nas oficinas localizadas na penitenciária é uma forma de auxiliar na ressocialização da presa e de abater sua pena. Por meio da FUNAP (Fundação “Prof. Dr. Manoel Pedro Pimentel”) empresas de material hospitalar, alimentícias, entre outras, contratam 384 reeducandas. Como retribuição, elas recebem ¾ do salário mínimo. Esse dinheiro é depositado numa conta para ser retirado pela presa quando estiver em liberdade. Como não há vagas para todas, existe uma lista de espera para conseguir trabalho.
Diferentemente da PFC, o Centro de Progressão Penitenciária “Dra. Marina Marigo Cardoso de Oliveira”, tem uma população maior que sua capacidade: 1043 presas para 1028 vagas. As acomodações sem grades abrigam seis camas ou mais. Desse total, havia uma ala com 11 mães e seus bebês menores de seis meses. O aspecto insalubre das instalações ficava evidente nas paredes úmidas, descascadas, com fios aparentes por toda parte.
Por ser regime semiaberto, as reeducandas realizam trabalhos nas dependências internas, nas oficinas instaladas na instituição ou conveniadas com a FUNAP. Contudo, apenas um terço das reeducandas trabalha, mesmo que o Código Penal preveja o trabalho no período diurno no cumprimento do regime semi-aberto. As demais entram numa lista de espera de cerca de dez meses com critérios não muito nítidos.
A penitenciária do Butantã tem uma ala disciplinar para onde são encaminhadas aquelas que cometem faltas graves, ou que são pegas com celular ou drogas, de acordo com a administração da penitenciária. Nessas celas, as prisioneiras compartilham quartos estreitos, sujos e escuros e ficam cerca de dez dias sem poder sair. Os visitantes ouviram queixas nessa ala sobre a falta de banho de sol e de medicamentos.
O contraste entre as duas instituições surpreendeu o juiz federal Tiago Bologna Dias “em tese, quando você progride, tem que melhorar, e o que a gente viu foi uma situação muito pior, desde a instalação física do presídio muito precária até a situação de tratamento, praticamente tudo era pior”.
Para a juíza federal Gabriela Azevedo Campos Sales o que chamou a atenção nas duas visitas foi a falta de informação das pessoas sobre o processo delas. “Quando não se recebe a visita da família, que faz a ponte das presas com os defensores, fica-se completamente no escuro, sem nenhuma ideia do que vai acontecer”.
Segundo a juíza federal Natália Luchini, o encarceramento feminino é um tema que começa a ser mais debatido dentro do Judiciário. “A gente sabe dos problemas do sistema carcerário brasileiro, mas saber é uma coisa, ver é outra. Para entender aquela realidade de fato, só entrando no cárcere. A experiência permitiu enxergar o que acontece com as pessoas quando saem da sala de audiências”.
Para a juíza federal Renata Lotufo, “o curso tinha a proposta de enxergar o encarceramento feminino de perto. Esse era o maior desafio: entrar nos presídios e nas celas”. A servidora Adriana Gomes de Proença aprovou as visitas aos presídios como atividade do curso: “A realidade empírica, fora das bibliotecas é essencial, assim como o contato humano com as detentas para saber como funciona na prática o que a gente coloca no papel”.
Na avaliação do juiz Tiago Bologna, “é importante para quem lida com justiça criminal ter noção do que está acontecendo com as pessoas que estamos sentenciando. Quando damos a sentença, pena tal, regime tal, às vezes não sesabe qual o resultado efetivo da sentença”.
De modo geral, as palestras e as atividades práticas, inclusive com uso de óculos de realidade virtual trouxeram uma visão ampla da realidade das encarceradas dentre elas mães, estrangeiras, trans, muitas vezes pobres e negras. “O curso prestigiou o lugar de fala das presas e traz outra perspectiva sobre o papel do juiz. Torna a nossa prática mais consciente”, afirmou a juíza Gabriela Azevedo. “Conheça a fundo a realidade sobre a qual seu trabalho vai incidir, e isso é um aprendizado. É uma autocrítica constante que devemos fazer”, declarou.
Redação: Clarice Michielan